08 janeiro, 2014

HISTÓRIA DO DIREITO E RETÓRICA (3)

Chegamos à conclusão desta série a respeito da história do estudo da retórica. Neste terceiro e último artigo veremos como as influências europeias se refletiram sobre o ensino em geral e sobre o estudo do Direito no Brasil e na criação de centros educacionais aqui.
 
Reflexos do estudo da retórica sobre o ensino brasileiro até sua fase pré-republicana.

 
Apesar do tipo de ensino que os jesuítas ofereciam e da resistência contra a “modernidade científica” na Europa, foram eles que, com o descobrimento e a colonização da terra Brasilis, vieram e disseminaram a instrução entre os nativos e criaram colégios de letras na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Ali se lecionava a matemática elementar, a gramática latina, a filosofia e a teologia da forma controlada e restrita já mencionada. Antes do reinado de D. José I (1750 – 1777), a metrópole, Lisboa, nunca se preocupou com o desenvolvimento intelectual da colônia americana. Estes desejavam “conservar as povoações nas trevas da ignorância” para poder obter delas “a incondicional submissão”. Além disso, o governo da metrópole também impedia a introdução no território da colônia de “meios destinados ao referido desenvolvimento, tanto assim que proibiu até a importação de livros, e chegou ao ponto de mandar sequestrar e remeter para Portugal, pela Carta Régia de 06 de junho de 1747, uma pequena tipografia que tinha sido estabelecida no Rio de Janeiro”. [1]

Assim, quando os jesuítas foram expulsos não só de Portugal através do discurso do interesse da libertação da ortodoxia religiosa e sufocante do escolasticismo que se irradiava até nos assuntos seculares, [2] eles o foram igualmente na colônia, mas com a finalidade de prejudicar essa parca instrução, [3] que, tornou o que era “ruim” na colônia, ainda pior. Postura contrária ao que aconteceu com a colonização da América espanhola, observadas também as devidas restrições e controle, cujos reis promoveram já no século XVI a instalação de universidades em Lima (Peru) e México. Pombal empenhou-se na luta contra os jesuítas pessoalmente. Os argumentos usados por ele em Roma, a quem dirigiu sua retórica contra os jesuítas, foram dos mais variados e se fundamentaram fortemente em problemas nas colônias. Alguns de natureza puramente temporal e política, outros, de caráter espiritual, místico e supersticioso. Alegou atritos deles com colonos no Maranhão do Brasil, a exploração de mão de obra indígena de forma sangrenta, a prática de comércio ilegal e a participação e patrocínio deles em várias revoltas. [4] Usando da crendice popular, acusou os jesuítas por todos os males naturais e materiais advindos a Portugal, o grande terremoto de Lisboa e até um ferimento “inexplicável” em D. José. Para a manipulação dessas emoções (pathos) populares foram usados os mesmos instrumentos religiosos de controle: Inquisição, prisões, masmorras e suplícios públicos, [5] agora orquestrados pelo Estado.

Os franciscanos passaram a suprir a lacuna deixada pela expulsão jesuíta do território brasileiro. Seu ensino se limitava ao ensino de línguas, filosofia e religião. Cursos jurídicos não existiam ainda. Quem quisesse estudar Direito ainda precisava atravessar o Atlântico e buscar as universidades ou de Coimbra ou da França e Itália. Era de Coimbra que o Direito português e as fontes romanas se irradiavam para as terras brasileiras.

Logo, o Brasil não possuía uma cultura jurídica própria, embora esse fosse o anseio dos intelectuais locais da época.  Em São Paulo, no ano de 1776, os frades franciscanos, incorporados ao convívio comunitário, criaram também uma escola agregada ao seu convento. O ensino da teologia, da moral, da retórica e do latim, suscitou a vinda de um número significativo de estudantes. Posteriormente, ali surgiu a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. [6] Antes mesmo dos primeiros cursos jurídicos, também outros cursos foram criados como fruto dessa vontade de estudar no Brasil. Em Minas, Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749 — 1814), poeta, advogado, nomeado pelo vice-rei, Luís de Vasconcelos e Sousa, professor régio de uma aula de retórica e poética que fundou solenemente em 1782. Também sob seus auspícios restaurou, em 1786, com a denominação agora de "Sociedade Literária", [7] a sociedade científica, cujo objeto principal "era não esquecerem os seus sócios as matérias que em outros países haviam aprendido, antes pelo contrário adiantar os seus conhecimentos". Com a mudança do vice-rei, foi encarcerado por dois anos, sendo posto em liberdade sem julgamento, confirmando a observação de que mudanças políticas influenciavam diretamente o ensino e as sociedades literárias de então, sem falar das arbitrariedades legais.

No ano de 1800 também foi inaugurado em Olinda, Pernambuco, um desses cursos pelo bispo de Olinda. [8] O Seminário de Olinda "tinha uma estrutura escolar propriamente dita, em que as matérias apresentavam uma sequência lógica, os cursos tinham uma duração determinada e os estudantes eram reunidos em classe e trabalhavam de acordo com um plano de ensino previamente estabelecido". [9] Era um seminário modelar onde se estudava latim, grego, francês, retórica, história universal, filosofia, desenho, história eclesiástica, teologia dogmática e moral, matemática, física, química, mineralogia e botânica. [10] Ali no Convento de Nossa Senhora do Carmo, de Olinda o frei Caneca, [11] em 1803, foi professor de retórica e geometria. Portanto, o inventário de Caneca adicionava ainda as cadeiras de geografia e música. [12] Resumindo as impressões do historiador Capistrano de Abreu, sem essa escola “não surgiria a geração idealista de 1817”. [13]

No Rio de Janeiro também há registro da criação de um curso de estudos literários e teológicos, em julho de 1776 e após a criação dos cursos jurídicos, foi criado no Rio de Janeiro o Colégio de Pedro II, em 1838. Não é muita pretensão afirmar que era equivalente ao Colégio das Artes de Coimbra. Nele, as cadeiras eram preenchidas por concurso, inclusive as de retórica e poética, e foram muitas vezes ocupadas por figuras eminentes da cultura nacional. [14]

A ideia de estabelecer o ensino superior no Brasil já existia por volta do ano de 1654, mas não de iniciativa portuguesa, pois foi o invasor holandês quem manifestou o primeiro interesse em instalar uma Universidade no Recife. Como estes foram expulsos, o projetou não foi levado adiante. Por sua vez, em 1820, o desembargador e ouvidor-geral daquela comarca, Venâncio Bernardino Uchoa, encaminhou ao rei João o pedido de fundação de uma Universidade em Pernambuco. O mesmo fez o deputado pernambucano Francisco Muniz Tavares que pleiteou tal feito junto às Cortes Constituintes de Lisboa entre 1821 e 1822. [15] Foram necessários mais alguns anos até que a “realidade” dos cursos jurídicos se concretizasse no Brasil.


[1]  TRIPOLI, César. História do Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1936, p. 19.
[2]  Para Pombal, os jesuítas constituíam-se num obstáculo à condução da sua política de reformas. Subjugada a nobreza lusitana com o Processo dos Távora e, setores do povo, com a repressão ao motim do Porto, o próximo passo era uma perseguição ao clero. Em 1757 Pombal iniciou sua campanha antijesuítica em Roma, acusando os padres da Companhia de praticarem comércio ilegal no Brasil e de incitarem as populações contra o governo. Averiguando a situação relatada pelo Ministro Português, a Santa Sé recebeu informações, manipuladas por aquele, sobre a veracidade das acusações feitas à Companhia de Jesus. Como resultado, os jesuítas foram suspensos de confessar e pregar em Lisboa, e o informador, o Cardeal Saldanha, foi recompensado com a cadeira patriarcal no ano seguinte (1758). O sentimento antijesuítico de Pombal nunca o abandonou, levando-o mesmo a escrever acerca do que pensava daqueles religiosos na sua Dedução Cronológica (publicação assinada por José Seabra da Silva). Chegou mesmo a afirmar que todos os males de Portugal se deviam aos jesuítas, ideia que foi acolhida na Europa por outros adversários da Companhia. De fato, França, Espanha e Nápoles imitaram Portugal, iniciando-se uma pressão contra os jesuítas tão grande na Europa que o Papa Clemente XIV, no breve Dominus ac Redemptor, de 21 de Julho de 1773, suprimiu a Companhia na Europa. Esta só veio a ser restaurada em 1814, a partir da Rússia, ainda que Portugal não consentisse na sua readmissão. D’AZEVEDO, J. Lucio. O marques de pombal e a sua época. 2. ed. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil; Lisboa: Seara Nova; Porto: Renascença Portuguesa, 1922,  p. 127 – 140.
[3]  MEIRA, Silvio Romero de Lemos. Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império. Notas introdutórias de Afonso Arinos de Melo Franco, Gilberto Freyre e Djacir Menezes. Rio de Janeiro: J. Olimpio; Brasília: INL, 1979, p. 52.
[4]  Como a revolta dos Beckman no Maranhão em 1684, a questão dos Sete Povos das Missões no Sul do Brasil que culminou com a Guerra Guaranítica (1753 – 1756). Cf. FRANCO, José Eduardo. O Mito dos Jesuítas. Em Portugal, no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX). Prefácio Bernard Vincent. v. I - Das origens ao Marquês de Pombal. Lisboa: Gradiva, 2006, passim.
[5]  É exemplo, o suplício público do velho padre jesuíta Gabriel Malagrida, que em sua tentativa malograda de rebater os ataques aos jesuítas, alegava que a causa do terremoto em Lisboa era a “ira divina” fazendo com que Pombal, que, estrategicamente, tomou as exortações moralistas do religioso como acusações, intensificasse seus ataques ao clero. Cf. FRANCO. Idem.
[6]  CHACON, Vamireh. Formação das ciências sociais no Brasil. 2. ed. Brasília: Paralelo 15; Brasília: LGE Editora; São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2008, p. 169-170.
[7]  Silva Alvarenga, nascido em Vila Rica em 1749 e falecido no Rio de Janeiro, em 1814, foi o mais moderno dos poetas do grupo “Sociedade Literária”, o menos iscado dos vícios da época, o mais livre dos preconceitos da escola, cujas alusões e ridículo não desconhecia, como se vê na sua "Epístola a José Basílio". Tem, além disso, bom humor, espírito e, em suma, revê melhor que os outros a emancipação produzida em certos espíritos pela política antijesuítica do marquês de Pombal. Como era mestre de retórica, evitou mais que os outros os recursos do arsenal clássico e mitológico e quando cedeu à corrente, o fez com muito mais personalidade, senão originalidade, mesmo com desembaraço e liberdade rara no tempo. Prova disso é "Teseu e Ariana", uma das melhores amostras da poesia brasileira, naquela época. VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. 1916. e-book Disponível em: .
[8]  O bispo era José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742 – 1821). PILETTI, Nelson, História da Educação no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ática, 1996, p. 37.
[9]  PILETTI, Nelson, História da Educação no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ática, 1996, p. 37.
[10]  BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1927.
[11]  Frei Joaquim do Amor Divino Rabello Caneca. Nasceu na cidade do Recife em julho de 1779. Religioso carmelita, ordenado sacerdote pelo Seminário de Olinda, dedicou-se ao magistério, período em que elaborou alguns compêndios inclusive o de retórica, Tratado da Eloquência. Considerado como representante típico do chamado “liberalismo radical” das primeiras décadas do século XIX. Participou da Confederação do Equador (1824) e elaborou a doutrina justificativa do separatismo. Quando o movimento foi derrotado, ele foi condenado a morte, sendo executado em janeiro de 1825. Cf. CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Obras políticas e literárias. 1. ed. Recife, 1875/76, 2 tomos (v. tomo I. Tratado da Eloquência, pp. 63 – 155); ou versão mais recente em: CANECA, frei Joaquim do Amor Divino. Obras políticas e literárias de frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Org. Antonio Joaquim de Melo. Recife: Assembléia Legislativa de Pernambuco, 1972.
[12]  CANECA, Frei. Typhis, XXVL. apud VEIGA, Gláucio. História das idéias da faculdade de Direito do Recife. v. 1. Recife: UFPE, 1980, p. 233.
[13]  ABREU, J. Capistrano. Capítulos de história colonial. Brasília: Senado Federal, 1998. 226p.
[14]  CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi. Revista de História, v. 1. n. 1. p. 123-152, jan./dez. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 133.
[15]  SILVA, Leonio José Alves da. Faculdade de Direito do Recife: breves apontamentos aos 180 anos de sua história. p. 05 –  06, Laranja mecânica, São Paulo, 11 ago. 2007, p. 5.